Não é de agora que o País recebe uma leva de população migratória, que até já foi definido por Michelle Machado de Oliveira e Enilde Faulstich, durante pesquisa sobre a língua portuguesa, da seguinte forma: “sob uma perspectiva metafórica, que o Brasil é uma síntese da grande Ibéria, com populações, em grande escala, ameríndias, africanas, europeias, asiáticas, pois, no auge das imigrações, vieram para o Brasil povos variados, a saber, portugueses, espanhóis, italianos, e alemães, japoneses, entre outros”.
No nosso Século, outra leva de imigrantes, desta vez de venezuelanos, peruanos, libaneses, dentre outras nacionalidades, por motivos diversos, intalaram se na Bahia trazendo na bagagem suas culturas, seus jeitos e maneiras, sua Gastronomia. E misturado a tudo isso, a vontade do pertencimento nas terras estrangeiras, buscando encontrar régua e compasso, como disse o mestre Gil, nesse novo desafio.
Pertencimento expresso pela venezuelana Maria Eumelia Villarroel, de 40 anos, há pouco mais de três no Brasil, fugindo das perseguições políticas do seu país.
“Na Venezuela eu tinha tudo, minha vida, casa, negócio, meu restaurante...mas a coisa foi complicada por causa da política. A gente foi perseguida, tive que fechar o restaurante e fui para Trinidad Tobago, ilha muito perto da Venezuela. Mas a xenofobia foi horrível, não deixou que a gente evoluísse, a gente procurou outro país e eu tenho um irmão que mora aqui há 5 anos”, conta.
Mariangela Nascimento, professora na UFBA, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Núcleo de Apoio a Migrantes e Refugiados (Namir)/UFBA, nos lembra sobre este pertencimento, citando Hanna Arendt em um dos seus artigos.
'Hannah Arendt enfatiza que o direito fundamental de cada indivíduo, antes de qualquer direito enumerado em declarações e positivado, é o direito a ter direitos'
Mariângela Nascimento - Comissão de Direitos Humanos do Núcleo de Apoio a Migrantes e Refugiados (Namir)/UFBA
“Hannah Arendt enfatiza que o direito fundamental de cada indivíduo, antes de qualquer direito enumerado em declarações e positivado, é o direito a ter direitos, isto é, o direito de pertencer a uma comunidade disposta e capaz de garantir-lhe qualquer direito, pelo fato da sua humanidade”.
Para Maria Eumelia, o sentimento de pertença tem muito a ver com a cultura de um modo geral, mas a cultura da gastronomia é objeto especial da integração com a cultura baiana e brasileira.
“A receptividade do baiano agora está sendo boa, poderia ser melhor, mas a gente faz tudo passo a passo. Aqui as pessoas amam seus temperos, sua cultura, seus sabores, suas raízes, mas também acho que tem que ser feito um trabalho para que os baianos aceitem o trabalho da nossa cultura, que é vizinha deles”.
É com grande espanto que Maria Eumalia relata o fato, curioso para ela, de não conhecermos nem termos qualquer contato com a comida venezuelana, uma vez que somos países de fronteira.
“A gente está tentando que aqui em Salvador as pessoas conheçam a nossa gastronomia. Aqui as pessoas conhecem a gastronomia chinesa, japonesa, italiana, portuguesa. Aqui tem muita influência da gastronomia francesa, mas é muito estranho que a Venezuela, que está na fronteira, o Brasil não conheça nada da gastronomia da gente. A gente tem alguns pratos típicos e a gente quer que os baianos conheçam nossa comida”, diz, com seu forte sotaque, tentando compreender como até hoje a cultura da Venezuela não chegou até os Brasileiros.
Quando diz isso, Maria Eumelia revela a necessidade da integração das culturas, de valorizar o que traz na bagagem e, devagarinho, “dar a conhecer”, como diz, a sua cultura por meio da gastronomia.
Para a Sarah Oliveira Carneiro, jornalista e professora com pós doutorado em Ciências Sociais do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia a gastronomia tem sido uma porta de contato da cultura que os refugiados e imigrantes trazem consigo.
“Então,a partir disso estamos conhecendo vários fenômenos ligados à interculturalidade porque qualquer gastronomia que passa por um processo de circulação ou de diáspora, ela precisa sofrer alterações. É evidente que essas receitas que os imigrantes estão trazendo estão passando por algumas alterações. Mas eu enxergo este movimento como um movimento promissor e uma possibilidade de acolhimento, de inserção no mundo do trabalho e de uma possibilidade de conexão nossa com a cultura que vem com essas pessoas. Então, reconheço aqui, pelo menos, três grandes boas consequências dessa conexão de saberes a partir da gastronomia”, reflete.
A peruana Edith Giovana Gallardo Hernández viu em Salvador, por causa do litoral e o potencial de frutos do mar, algo similar aos produtos encontrados no Peru. E percebeu que o ceviche era uma forma de trazer a cultura peruana, dentre outros alimentos, para a capital baiana. Mas um ceviche original, pois o que conhecemos, segundo ela, não é o ceviche verdadeiro do Peru.
“O modo de preparo é totalmente diferente do que vocês, brasileiros, conhecem e têm comido nos restaurantes, né? Que são uma mistura com tomate, manga e não sei que mais de coisas boas têm no ceviche, mas não tem nada a ver com o ceviche peruano”, conta meio rindo da nossa criatividade e transformação do prato original do peruano.
“Ceviche é originário do Peru, o nosso prato é o carro chef. Ele nos representa na gastronomia mundial. É através do ceviche que estou trazendo minha cultura peruana, muito enraizada em nosso país, nas casas, nas ruas. Para mim, é um prato muito afetivo. Nos reunimos em família e dizemos: -Vamos fazer um cevitito! Juntos preparamos, então é muito afetivo. E eu vim com a mentalidade, no Brasil, de fazer o meu próprio espaço, levar a minha cultura, levar para onde eu estiver, levar comigo essa coisa que eu amo fazer: cozinhar”, revela.
O Sírio Jawad Mizher, 34 anos, no Brasil há 8, formado em gastronomia e chefe de cozinha, veio a convite de um amigo, acabou gostando e ficando por aqui. Hoje, ele comanda o próprio negócio, o restaurante Surya Comida Árabe e Oriental, que comercializa comida Árabe, mas também japonesa.
“Inicialmente, foi difícil para conseguir me adaptar e foi muito trabalho, pois aqui em Salvador a culinária árabe não e muito conhecida como nos outros estados no Brasil”, acredita.
Quando chegou à Bahia, Maria Eumelia tratou de introduzir um bocadinho de gostosura do seu país em Salvador.
“A gente procurou conhecer a gastronomia de Salvador, os temperos, os sabores, fizemos uma pesquisa e depois de mais de três anos conseguimos trazer a comida típica venezuelana. A gente está tentando fazer com que as pessoas conheçam a nossa gastronomia”, diz.
Mas, para trazer algo típico da Venezuela, Maria Eumelia teve certa dificuldade com os ingredientes. Ela tentou reproduzir a arepa, um prato de origem indígena, comida típica do local. O prato é feito com uma farinha de milho de um jeito muito próprio e não há nada similar na Bahia. Ela conta que teve que usar a criatividade e recorrer ao modo antigo de se fazer, como na Venezuela de outrora, e reproduzir a comida típica por aqui.
“Quando cheguei eu comecei a pesquisar, vi que precisava de uma farinha para dar a conhecer meu prato, mas eu não conseguia. Então eu tive que retroceder, usando a técnica das minhas avós, que faziam esse prato com milho natural, cozido, passado por um moinho e aí a gente conseguiu fazer em Salvador. O nome é arepa, feito com farinha de milho, assado, recheado com ingredientes infinitos”, detalha.
Eumélia foi parar na Sete Portas atrás de um equipamento que ela chama de moinho, um moedor que pudesse “espremer” o milho, base para da receita venezuelana com ingredientes adaptados para a confecção do prato típico.
Mas este sentimento de pertença faz parte do mais genuíno sentimento dos povos imigrantes, que por algum motivo saíram de suas terras para fincar morada em outras plagas.
É para homenagear essa gente estrangeira, que traz na bagagem grandes histórias, principalmente um sentimento de pertencimento, que hoje nossa receita da Coluna Histórias & Sabores é a arepa! Ficou curioso?
AREPA-Ingredientes
- 1 colher de Chá de sal.
- ½ kg milho branco ou amarelo (o que faz a canjica)
- Um pouco de agua para manter as mãos úmidas
Como preparar a Arepa na versão brasileira-Para a massa do milho-Cozinha o milho para que fique bem macio. Depois de cozido, quando começar a esfriar, passa pelo moinho. Amassa por uns 5 minutos com as mãos, sempre umedecendo com água. E a massa está pronta. Deixa descansar 5 minutos. Em Seguida, divida a massa em 10 porções iguais. Forme pequenas bolotas (de mais ou menos 100gr) e achate com as mãos até obter discos de 10 cm de diâmetro. Cozinhe em uma chapa ou frigideira em fogo médio por 10 minutos de cada lado. Abra de um lado e recheie a gosto.
Sugestão de recheio típico venezuelano-Abacate, frango desfiado e maionese. Misture todos os ingredientes, coloca limão, sal, coentro e está pronto!
Sugestão brasileira-Carne moída com queijo prato ou o clássico presunto, frango desfiado e queijo
Observação: O moinho pode ser encontrado na Sete Portas. Não convém passar o milho em um processador ou liquidificador porque pode comprometer a textura.
Este texto foi publicado em 2023 e reapresentado neste fim de semana como uma homenagem aos imigrantes e aos desafios que têm enfrentado, especialmente nos últimos tempos.
Isabel Oliveira.
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