Fotos: José Wagner, Tiago Stille e Davi Pinheiro / Governo do Ceará
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José Francisco Rocha, conhecido como Mestre Zé Pio, aos 70 anos, é Mestre da Cultura do Estado há 11. Ele dedica seus dias ensinando a arte do Bumba Meu Boi e o folclore para crianças dos bairros Pirambu e Barra do Ceará, na capital cearense, mantendo viva a tradição dos brincantes.
Já é rotina o Mestre bater nas portas da vizinhança convencendo os jovens a ensaiar a dança que gira em torno da lenda sobre a morte e ressurreição de um boi. Em mãos, sempre um termo de responsabilidade devidamente entregue aos pais. "Minha preocupação é tirá-los da área de risco. É evitar o mal caminho ensinando cultura. De manhã eles têm que ir para a escola e depois vão ensaiar", diz Zé Pio.
Diariamente, ele está na Colônia Ecológica do Sesc Iparana fazendo o que mais gosta. "Quando saio de casa, já saio cantando calado. Não tem coisa melhor do que a gente andar com Jesus do Nazaré. Todos os dias eu e meu filho Kiliano estamos lá. Segunda tem ensaio do Bumba Meu Boi, terça tem ensaio do Reisado, quarta tem ensaio de teatro". E quem quiser atrapalhar a sua "terapia diária" vai ter muito trabalho.
"Precisa de muito ensaio para a criança não errar a dança, o canto. Eu amo o Bumba Meu Boi, por isso eu digo: não 'bula' com meu Bumba Meu Boi! Fui atéa Secretaria da Cultura, encontrei o secretário Fabiano Piúba, ele me entregou de prontidão um ofício permitindo que eu ensaiasse. Quando estou ensaiando, já deixo o documento ali prontinho".
Segundo ele, não tem recompensa maior que ver a nova geração aprendendo através da arte. "Quando eu vejo uma criança dançando o boi, o coco, o maneiro-pau, o fandango, com o sorriso no rosto, eu me encho de orgulho. Eu faço por amor, faço de coração. A gente faz com maior gosto, coloca uma tábua num canto, aperta um parafuso, ajeita a cabeça, aperta o chifre. Um boi, uma ema, um jaraguá, um bode, tudo trabalhado com a nossa própria mão, a gente tem como um ser vivo. Isso é a arte da cultura!".
A lenda
A história mais comum do Bumba Meu Boi fala da escrava Catirina, grávida, que pede ao marido Mateus, para comer língua de boi. Com muita música e dança, personagens humanos e animais fantásticos estrelam a saga da ressurreição do boi.
"O Bumba Meu Boi se brinca primeiro com cordão vermelho, segundo com o cordão azul. Tem ema, bode, rainha, reis, baliza, índios, princesas, vassalos, pastor, vaqueirinhos, príncipe, capitão e o doutor, que é o palhaço, que sai fazendo palhaçada por todo canto. Uma brincadeira de Bumba Meu Boi que não faz o povo sorrir não é Bumba Meu Boi", explica.
E para produzir isso tudo tem um custo alto. "É preciso muito investimento. Só uma pena de avestruz para as índias custa R$ 18. Só uma fantasia tem cerca de 285 penas. Eu saio pedindo a um, a outro, vou pra dentro da comunidade pedir apoio. O Governo do Ceará dá apoio, mas se não desse eu faria do mesmo jeito, pois não faço por dinheiro, faço por amor".
Trajetória
A paixão pelo Bumba Meu Boi surgiu há muito tempo, quando Zé Pio era criança. "Foi com meu tio Vicente, que brincava de palhaço no Boi Reis de Ouro. Eu tinha só três anos, não sabia dançar, mas sabia andar, e ficava pra lá e pra cá. Com quatro anos eu já sabia bulir os pés. Com cinco anos, ficava perto do finado Zé Bombeiro, que era quem fazia o boi e eu ficava lá olhando. Ele dizia para meu tio que eu era muito curioso, via como cortava com o serrote, prestava atenção em tudo. Aos 20 anos formei meu próprio grupo, o Boi Terra e Mar", lembra.
E não foi fácil manter a arte com as transformações do tempo. "Teve um tempo que desisti da brincadeira do Bumba Meu Boi, quando a TV chegou, em 1957. Os governantes colocaram a televisão na praça e os brincantes preferiam a novidade, ver os filmes do Rin Tin Tin, os filmes de cowboy. Eu chamava para brincar de boi, mas diziam que já era. Mas eu fui sempre acreditando, devagarzinho".
Foi preciso um empurrão vindo da própria família para retomar as atividades com força máxima. "Em 1999 minha sobrinha me chamou para fazer um boi. Já tinha uns 10 anos que eu tinha deixado de brincar de boi. Nós batizamos de Boi Juventude. Fizemos alguns ensaios e começou a voltar a memória. Hoje sou o guardião da memória de muitos bois aqui do Pirambu, local de muita audiência do Bumba Meu Boi".
E foi o Boi Juventude que rendeu a ele o título de Mestre da Cultura do Estado. "Em 2005, fui reconhecido Tesouro Vivo da Cultura. Quem me deu esse título foi o Boi Juventude. O Boi Ceará ficou com inveja, mas ele me deu o título de Doutor. Minha vida mudou muito depois que me tornei mestre. Estou bastante satisfeito por estar trazendo a cultura popular para a vida das pessoas".
Mais Mestres da Cultura
No último dia 20 de junho, o governador Camilo Santana sancionou, no Crato, a Lei dos Tesouros da Cultura, que ampliou o número de Mestres da Cultura no Estado. Anteriormente eram 60, agora serão 80. A ampliação representa o cumprimento de uma das metas do Plano Estadual de Cultura, instituído em novembro de 2016 e que contempla diretrizes para a valorização da cultura popular tradicional.
Isso é muito importante, pois é um reconhecimento aos Mestres da Cultura. Ele está resgatando o povo que sabe de cultura. É uma valorização grande", disse o Mestre Zé Pio.
Os mestres são reconhecidos como difusores de tradições, da história e da identidade, atuando no repasse de seus saberes e experiências às novas gerações. Selecionados pela Coordenadoria de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secult, após apresentação de propostas pela sociedade civil, os mestres da cultura passam a contar com reconhecimento institucional e recebem um subsídio no valor de um salário mínimo mensal, como auxílio para a manutenção de suas atividades e para a transmissão de seus saberes e fazeres.
O programa Mestres da Cultura se tornou um referencial do Ceará para o Brasil, recebendo, à época de sua criação, prêmio do Ministério da Cultura, pela qualidade e pelos efeitos da iniciativa.
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