"Caros amigos,
Em meio à calamitosa situação em que se encontram os sertões cearenses no que se refere à crise da falta de água, assoma-nos grande satisfação o reconhecimento profissional de um conceituado estudioso da problemática hídrica nordestina, o médico sanitarista mineiro Apolo Heringer Lisboa, um dos que, em dado momento, anos atrás, se posicionaram contrários às minhas teses favoráveis ao Projeto de Integração do Rio São Francisco. Conheci-o pessoalmente num debate da TV Cultura de São Paulo no dia 13 de março de 2008. Despindo-me de vaidades, peço permissão para lhes transmitir o e-mail, abaixo transcrito, em correspondência pessoal do dedicado cultor da hidrologia, acima referido, parecendo mais querer ele imputar responsabilidades aos renomados e competentes técnicos, João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco e Tomaz Patrocínio, geólogo paraibano, antigo servidor da SUDENE e a mim.
Esta mensagem a seguir exposta, ao mesmo tempo em que me sensibiliza, mostra um grito de revolta ante a triste realidade porque passa a nossa Região e convoca-nos à continuidade de nossos trabalhos. É como Apolo Heringer diz em outro e-mail a mim enviado: "O Brasil precisa de pluralidade cultural e não de monocultura. As pessoas e as contradições entre elas se completam, enriquecem o contexto e as possibilidades". Quantas vezes tenho pensado em parar esta minha luta desigual contra a incompetência e a demagogia que grassam e me afligem e tornam em risco o futuro de nossa Região. Porém, nessas ocasiões, lembro-me do meu passado como engenheiro do DNOCS e vejo nos meus descendentes a possibilidade de, em futuro, poderem me responsabilizar por omissão. Abraços. Cássio Borges".
P.S. - Em 2013 Apolo Heringer Lisboa foi escolhido a Personalidade Ambiental do ano no Brasil tendo recebido o Prêmio Wernek de Sustentabilidade à Natureza pela AES Corporation, o Oscar da Ecologia.
Prezado Cássio Borges
Inicialmente, acho um exagero a perfuração de 1.000 poços. Depois, vão salvar o que? Ainda, convivência com a seca em que atividade socioeconômica? Quais os sistemas aquíferos objeto destas perfurações? O sistema Araripe, contido nas rochas da bacia sedimentar do mesmo nome? Ou do sistema Cristalino, amplamente dominante na área do Estado do Ceará? Ou do Sistema aquífero Aluvial, que já foi objeto de um programa de construção de poços amazonas para abastecimento da população, aí pela década de 1970 do século passado, justamente localizados, pelo menos em sua grande maioria, na bacia hidrográfica do rio Jaguaribe? Foram muitos os poços perfurados nestes sistemas, sem que isto tivesse propiciado aos habitantes do meio rural a tal da convivência com a seca. Conviver com ela, para mim, significa o seguinte: primeiro, assegurar ao homem do campo abastecimento de água potável, qualquer que seja o evento de seca (aguda, plurianual, etc.); segundo, dotar o agricultor de condições para criar seu rebanho de gado e de colher o que plantou. Nada disso aconteceu, nem no Ceará, nem em qualquer área inserida no Semiárido. Nem mesmo os perímetros de irrigação ficaram, em sua inteireza, protegidas das mazelas das secas. Muitos, hoje, somente existem em parcelas mínimas, ou, mesmo no papel. As razões são muitas e específicas, relacionadas com cada atividade socioeconômica. No caso do abastecimento humano rural e pior, de vilas, povoados ou pequenas cidades, o suprimento hídrico por poços no Cristalino revelou-se deficiente. É que um projeto de abastecimento hídrico precisa ter uma vida que assegure o suprimento com segurança pelo período considerado. Exatamente como se faz ou se deveria fazer com a açudagem. O Cristalino, em geral, não se presta a isso. Os reservatórios (fraturas, falhas, áreas intemperizadas arenosas) são de dimensões limitadas, descontínuas, tanto em superfície, quanto em profundidade. Além disso, suas propriedades hidráulicas (coeficientes de permeabilidade e de porosidade eficaz) são sofríveis, o que confere ao Cristalino uma alta vulnerabilidade temporal. Além do mais as condições de recarga são, igualmente precárias e difíceis, processando-se, apenas, no contato do curso d’água com a estrutura de fraturas e de falhas, por ocasião das chuvas, quase nunca havendo reposição do volume d’água bombeado pelos poços. Estudei estas condições na região de Monteiro/Sumé do Cariri paraibano, observando por cerca de 4 anos a evolução dos níveis hidrostáticos de 5 poços escolhidos para tal. Em todos, estes níveis não foram recuperados, mesmo em ano de chuva acima da média como foi o de 1974. A figura a seguir, emblemática do que afirmo, comprova o que disse.
O Cristalino, pelas características quantitativas de seus poços (média de 2.000 L/h) e qualitativas de suas águas, pode atender, em termos gerais, as necessidades hídricas do gado, havendo casos de que nem isso é possível. E dessedentação dos animais não é tudo. Eles precisam se alimentar e, para irrigação, este aquífero não oferece condições seguras através dos tempos, onde secas se repetem. Restam os demais sistemas (Aluvial e outros sedimentares). Estes, para serem bem captados e explorados precisam ser estudados em toda a sua extensão, em detalhes, requisito necessário ao seu bom desempenho, inclusive de adequação das ofertas às demandas, tanto em termos quantitativos, quanto qualitativos. isto, nunca foi feito. O Inventário Hidrogeológico do Nordeste da antiga SUDENE, é, apenas, isso, uma catalogação de poços e uma avaliação preliminar das águas subterrâneas, sujeita a imprecisões enormes, para mais ou para menos, conforme está consignado no Plano de Aproveitamento Integrado dos Recursos Hídricos do Nordeste – PLHIRINE (SUDENE, 1980). Participei de ambos os trabalhos, sendo que o PLIRHINE foi um marco que mudou a minha visão sobre água subterrânea, antes vista como uma estrutura para armazenar água, estanque, sem conexão com as águas fluviais. Desde 1977, quando este trabalho foi concluído, vejo que, como as águas superficiais, as subterrâneas têm como atributo fundamental, o escoamento. Este se origina com a recarga, fluindo pelo interior do sistema aquífero e saindo ou na rede hidrográfica ou desaguando nos oceanos. No caso do Cristalino, os rios nele assentados são efêmeros, em sua grande maioria, o que revela a pobreza do sistema. A exploração da água de armazenamento leva o aquífero (são, apenas, zonas aquíferas) à exaustão. Isto tem acontecido. Os rios que são intermitentes o são pela presença do sistema aquífero Aluvial, caos do Jaguaribe, Piranhas e seus afluentes, entre outros rios que banham o nosso Semiárido. O sistema aluvial pode oferecer trechos que permitam o seu aproveitamento com vistas à correção das irregularidades pluviométricas que atinge as colheitas e forrageiras naturais, mas, apenas com uso de suas águas na estação das chuvas, mesmo se regulares. Sendo esta região, principalmente a do Nordeste Oriental (CE, RN, PB e PE), maiormente de constituição Cristalina, o grande recurso hídrico das mesmas são as águas superficiais. É nelas que deve repousar a nossa segurança hídrica. O papel das águas subterrâneas, nesta região hídrica, é secundário e suplementar, nunca alcançando o epíteto de “salvação” do Semiárido. Já os nossos reservatórios superficiais devem atender as condições de regularização plurianual, qualquer que seja o evento hidrometeorológico, no caso de suprimento de demandas permanentes e crescentes no tempo e no espaço. Os que nada podem regularizar precisam de aproveitamento imediato, de acordo com suas características dimensionais e qualitativas. A isto é que se chama de gestão segura, o que infelizmente, mesmo no Ceará, decantado como pioneiro no gerenciamento dos seus recursos hídricos, não tem acontecido.
Vou parar por aqui, esperando ter respondido aos questionamentos do amigo e conhecimento dos demais parceiros de mensagem, igualmente amigos.
Abraços a todos.
Patrocínio
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